Vou variar um bocado. Isso de começar uma crítica do princípio e acabar no fim é de quem tem as vistas curtas! Por isso vou começar do fim para o princípio. Só porque sim. Não é inédito, o Roger Ebert já o fez sobre precisamente o mesmo filme. Sim, podia dizer que pensei nisso antes de ler o que ele tinha para dizer, mas quem é que acreditaria?
Bem, o final do filme. Uma prisioneira alemã é exibida com se de gado se tratasse a um grupo de soldados americanos, bêbedos, cuja única companhia feminina que tiveram durante anos foi a sua baioneta (Atenção! Não estão perante uma expressão obscura referente à genitália masculina, mas sim a “um pequeno sabre, com um só gume e punho em cruzeta, adaptável através de anéis, à boca de fuzil, mosquetão e armas semelhantes para substituir os projécteis em combate corpo-a-corpo” como define sabiamente a Wikipedia). Tememos pela segurança da jovem alemã. Olhamos para os soldados e não vemos seres humanos. Vemos animais.
A prisioneira é apupada, insultada e enxovalhada. É-lhe pedido que cante uma canção – pois mais nenhum talento se lhe consegue vislumbrar.
Lavada em lágrimas, as palavras começam a brotar, acompanhadas de uma tímida melodia e de um talento, no máximo, aceitável. O inesperado acontece. Os apupos abrandam até cessar. As faces transfiguradas por anos de luta, privação e violência adquirem um tom humano que há segundos atrás parecia impossível. As lágrimas começam a correr, ou a caminhar devagar pela cara dos homens e parecem revelar que, como a chuva que molda os desfiladeiros, foram elas que sulcaram aquelas faces de rugas.
As bestas tornam-se homens.
Esqueçam o que disse no início. Não comecei a crítica do filme só porque sim. Alterei a ordem natural das coisas porque não o podia ter feito de outra maneira. Tinha uma opinião do filme, que mudou depois desta cena. Poucos filmes conseguem em duas horas passar a mensagem que aquela cena passou em minutos. Assim como em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, Kubrick fez uma obra completa que, se fosse privada das cenas finais seria um exercício de futilidade.
Essa cena representa o limbo dos peões da guerra, entre um longínquo passado pacífico e o iminente futuro belicoso. Cerca de metade delas não voltará a viver pacificamente e, os que voltarem, vão padecer de cicatrizes tão profundas que não os deixarão viver pacificamente. O que eles têm é o agora. E no agora não são soldados, nem tenentes, nem americanos, nem alemães, nem pretos, nem brancos, nem cor-de-rosa. São Homens. Homens unidos ao som do inimigo que, no limbo, deixa de ser o inimigo.
Esta imagem ficou-me tão marcada na mente que torna difícil apontar críticas ao filme. Mas nem por isso vou deixar de fazê-lo: Os diálogos são demasiado teatralizados e é facilmente perceptível que alguns são feitos em voz-off; as cenas de guerra mostram a sua idade e as cenas de acção mais uma vez pecam pela excessiva teatralização. Mas pensando melhor, isto não são falhas, são características próprias de filmes mais antigos e, pessoas habituadas a cores e flashes e explosões e efeitos especiais (eu), interpretam-nas erradamente como falhas.
No meio destas “falhas” e à volta da cena que descrevi extensivamente, está um belo filme e, acima de tudo, uma mensagem muito bem arquitectada. Deixo-vos a vós o prazer de a encontrar.