sábado, 7 de junho de 2014

Aquilo que não é tão evidente



Está a chover torrencialmente, são duas da manhã e eu resolvi ficar a ler “The House of God” até agora. Má ideia, porque agora não consigo dormir, dado os pesadelos e recordações que este livro por vezes me consegue trazer (daí a leitura estar a demorar).


Ouvi falar deste livro, numa palestra do Dr. Guillermo Couto, especialista em Medicina Interna e Oncologia. Fiquei curiosa e resolvi experimentar a versão inglesa do mesmo. 


A história gira em torno de um grupo de médicos internos, acabados de sair da Universidade. Pela sua excelência académica, são colocados num dos melhores hospitais do país – “The House of God”. Mas, com o desenrolar do enredo, percebem que aquilo que aprenderam nas aulas, não serve para o que os irá colocar à prova – lidar com a falta de glamour do mundo real da Medicina.


Embora este seja um livro sobre médicos internos num hospital de medicina humana, não consigo deixar de fazer uma comparação com o mundo da Veterinária; da pouca experiência que já tive em clínicas/hospitais, existem episódios que deixam marca. Alguns deles bastante recentes e que, a esta hora da noite, tornam-se um pouco assustadores. 


Assim como as personagens deste livro, quando entramos ao serviço, quer seja como estudantes, internos, ou como veterinários experientes, temos que colocar a nossa máscara de protecção. Por detrás dessa máscara estão os nossos sentimentos, que na maior parte das vezes tem que ser reprimidos, não só por questões hierárquicas, mas também para nos auto-preservarmos e conseguirmos ser bons técnicos. Há os que se servem do humor, os que gritam e descarregam as frustrações nos hierarquicamente inferiores, os que esperam pela hora de ir para casa, os que choram às escondidas e, os piores de todos, os que descarregam no animal.  


São estes últimos que me assustam. 

Ao ver esta pessoa, que à partida gosta de animais, ou não seria Veterinário, completamente alucinada, pergunto-me: qual é o grau de exaustão/afastamento necessário para chegar a este ponto? Ao ponto em que o som de mais um animal a ladrar é suficiente para me pôr a gritar e pontapear a jaula do mesmo, enquanto o mando calar?; quanta humanidade é preciso perder, para chegar ao estado em que me rio, quando parto acidentalmente uma costela ao fazer reanimação de um animal politraumatizado e à beira da morte?


“Sabes qual é a taxa de sucesso na reanimação de um animal com paragem cardiorespiratória? Menos de 5%.”
 

Pois, por vezes as hipóteses de sucesso são baixas, mas não devemos esquecer-nos que aquele animal é um ser vivo; não é suposto ser engraçado, quando uma costela parte; não é suposto ser engraçado, quando um animal se urina, porque o aterrorizamos. 


É importante ter uma máscara de protecção. É importante proteger a nossa sanidade mental, mas ao fazermos isso, é importante não nos perdermos pelo caminho. 


Nas horas de maior stress, é isto que espero lembrar-me. Disso e dos episódios menos felizes, que já observei. O medo de não ser capaz de reagir de forma melhor continua a assustar-me. 


Mas recuso-me a praticar medicina só pela ciência. 

4 comentários:

Ana Sousa disse...

Conheço um veterinário, homem adulto, com alguns anos de experiência e que considero um bom veterinário. Passou por uma fase complicada, uma sucessão de casos complicados que não terminaram da melhor forma. A gota de água que fez transbordar o copo foi uma dogue alemã, que chegou à clinica com sinais evidentes de uma torção de estômago. Foi imediatamente levada para cirurgia, que até correu bem. No dia a seguir, estava a cadela na crate dela, na zona de internamento e os donos a chegar para a ir buscar. Sofreu uma paragem cardio respiratória, ele tentou reanimá-la, passou dez minutos a tentar reanimá-la... e não conseguiu. Era o dia de anos dele, e tinha perdido mais um animal... No dia de anos dele, com a familia em casa à espera para festejar, ele ficou sentado dentro do carro no caminho de acesso, e chorou toda a raiva, toda o sentimento de impotência, toda a tristeza, deu murros no volante jurou que nunca mais iria praticar veterinária. Foi preciso algumas semanas afastado, para conseguir dar o passo atrás que necessitava, para se recompor, para interiorizar que não tinha sido incompetência da parte dele nos casos que lhe tinham passado pelas mãos. Nunca, nunca descarregou a frustração dele num animal nem num dono de animal. é um dos melhores veterinários que conheço!

Alu disse...

Olá Ana! Obrigada pela visita e pelo testemunho! :D

Acredito que existam os excelentes veterinários, como esse de que falas. Acredito até que sejam a maioria. Mas infelizmente, há coisas que presenciamos que nos levam a questionar se seremos capazes de manter os nossos princípios íntegros. Eu espero sinceramente ter essa capacidade e o apoio de outros profissionais igualmente estáveis e, claro, da família e dos amigos.

Só tenho pena daqueles que não tem esse suporte. E tenho sobretudo pena dos animais que estão aos cuidados dessas pessoas.

Ana Sousa disse...

Andei a dar uma volta pelo blog, e gosto da forma como escreves!!

Quanto ao que referiste, eu penso que como profissionais de saúde que seremos, penso que não somos menos importantes do que médicos (de humanos), psiquiatras, psicólogos, etc. Tb temos que encontrar esse equilibrio emocional, uma espécie de defesa pessoal que nos permita demonstrar carinho e humanidade e ao mesmo tempo salvaguardar a nossa saúde emocional. Disse me uma amiga veterinária que o mais tramado de tudo é tratar animais de amigos ou familiares. e se algum dia todos os truques que usamos para nos controlar, falharem... espero ter a capacidade de me afastar sem prejudicar o animal que está ao meu cuidado.

Alu disse...

Obg mais uma vez Ana! És sempre bem-vinda neste pequeno espaço virtual!

Pois, com os animais de familiares os desafios são muitos. Tenho um exemplo em casa. Não sou levada a sério e sugestões que faço são mais facilmente colocadas de lado, ou mesmo ignoradas. Quando os tiver de tratar a sério imagino o quão pior vai ser...