por Andreia Silva,
24 anos
O dia estava a chegar ao fim.
Estava naquela hora em que a noite ainda não chegou e o dia ainda não foi
embora. Aquele Outono chegou com cara de inverno. Contrastando com os dias
anteriores, a chuva nesse dia não fez questão de aparecer, dando lugar ao sol e
consequentemente ao frio. Mas ela sempre preferira o frio de rachar,
preferencialmente pintado de branco, à chuva, que era incomodativa.
Tirou da bolsa as luvas
guardadas desde que o sol lhe começara a aquecer as mãos, mas agora que esse
tinha ido embora, não as podia dispensar. Em tempos, quando andava com o
coração a ferver e em chamas, não se importava com as temperaturas negativas a
tocar-lhe as mãos. Mas agora não, o calor, perdeu-o todo, naquela tarde
fatídica de Junho quando uma onda, uma simples onda, levou uma parte integrante
de si, um ramo do seu tronco, o calor inflamado que fazia arder o coração e as
mãos. E agora tinha de usar luvas. E ela que nunca tinha gostado de luvas.
Começou a sua caminhada
habitual pelas ruas tão conhecidas, até casa. O percurso era tão rotineiro que
nem precisava de pensar. Os pés quase que iam sozinhos. E ultimamente era
assim. Ela limitava-se a ir para onde os pés a levavam. Se eles, num instante,
não mexessem mais, ela fazia-lhes a vontade e parava onde quer que estivessem.
O mundo já não fazia sentido. Mesmo com toda a gente sempre do lado dela, a
mãe, os amigos, até os colegas de trabalho para quem nunca tinha falado, lhe
vinham dizer que podia contar com eles. Mas ela já não se sentia parte deste
mundo. Só queria viver o mais rápido possível para voltar a ter o calor de
volta ao seu coração. 2
Entrou em
casa e encontrou a mãe e o “sobrinho”, como apelidava o menino de quem a mãe
tomava conta desde que era um bebe. E este encontro tinha-se tornado habitual
nos últimos tempos. Por esse hábito já considerado rotineiro, não percebeu de
imediato que algo se passava. O pequeno reguila não fez jus ao nome e, não veio
a alta velocidade agarrar-se às suas pernas e averiguar se haveria algum
presente para ele, escondido entre as coisas dela. Ao invés disso estava num
estado completamente apático a olhar para a parede. Procurou a mãe pela casa
toda, até que a foi achar na varanda agarrada ao telemóvel com uma cara capaz
de assustar um morto.
- … mas olhe, assim que
souber de mais alguma novidade, peço-lhe que me telefone. O Salvador está muito
assustado. Obrigada. Com licença.
- Mãe, que é que se passa?
E não tentes dizer que está tudo bem e que não é nada para me poupar, porque
está visto que aguento com qualquer coisa.
- É que…a Vera vinha hoje mais
cedo buscar o Salvador para irem passear e… nós estávamos na porta a vê-la
chegar e… devias ver o sorriso dele, estava tão feliz, mas depois…
- Depois o quê? Mãe,
diz-me por favor o que se está a passar!
- … depois veio um carro
que não a viu ou viu mas não consegui travar, olha não sei… a Vera foi
atropelada e o Salvador assistiu a tudo.
Ela queria dizer tudo,
queria dizer alguma coisa que fosse, mas nada lhe saia. Só conseguia pensar no
pequeno reguila e no que ia ser dele sem aquela mãe, já que pai nunca soube o
que era. Tinha três mães, uma mais mãe, como ele dizia sempre. 3
- A Vera…
morreu?
- Não, mas o estado é
considerado muito grave. Não se sabe se irá sobreviver!
Ela correu para a sala e
encontrou-o no mesmo estado. Estado que ela conhecia tão bem, infelizmente!
Estado de quem não sabe como viver daqui para a frente, estado de quem reza
para que tudo o que está a acontecer seja um pesadelo e que o despertador toque
o mais rápido possível. Tinha medo de falar, não sabia se ele quereria estar
sozinho, mas uma criança do alto dos seus cinco anos não deveria ter que
conhecer a palavra solidão.
- Então pequenino?! A mãe
vai ficar boa, pensa que sim e isso vai acontecer. Sabes que ela não gosta de
te ver triste.
- A culpa foi minha! Eu
pedi-lhe tanto para irmos passear. Ela vai embora… para o céu?
E nesse instante fez o que
ainda não tinha conseguido: chorar. Chorar como choram as crianças de cinco
anos quando percebem que perderam para sempre alguém que amavam, chorar como
choram as crianças de cinco anos quando se sentem desprotegidos porque lhes
roubaram a capa de protecção e mataram o seu super herói. Amarrou-se a ela e
ela deixou-o ficar o tempo que ele quis. Nem tinha reparado na mãe, encostada à
porta, à espera do momento certo para entrar, se é que naquela altura, havia um
momento certo que fosse, para o que iria acontecer. 4
- Ah mãe,
estás aí! Coitadinho, adormeceu de tanto cansaço. É bom que ele durma. Assim
enquanto dorme tem sonhos bonitos. Já ligaram do hospital? Há novidades? Que
cara é essa?
- A Vera não resistiu aos
ferimentos…
E agora ela também
chorava, não tanto pela Vera, com quem poucas vezes se tinha cruzado, mas por
aquele menino que ia ter uma mudança tão grande na sua pequena vida. E ela
sabia tão bem, demasiadamente bem o que era perder alguém assim, desta maneira,
por nada e do nada. E ninguém merecia ter essa dor tão intensa escrita nas
páginas da vida, muito menos num caderno que ainda mal tinha estreado.
Com a agitação que elas
fizeram, Salvador despertou.
- Vocês também estão
tristes?
- Salvador, olha para mim.
Tenho que te dizer uma coisa, mas quero que saibas que nunca vais ficar
sozinho, eu vou estar sempre aqui para ti e nunca te vou abandonar. A tua mãe
vai gostar sempre de ti, sempre, e vai olhar sempre por ti e vai fazer com que
tu sejas muito feliz. E tu podes continuar a gostar dela da mesma maneira.
Porque ela lá de cima, do céu, vai sentir isso. Está bem pequenino?
Ele acenou com a cabeça,
como se o sono o tivesse feito compreender essa parte, de que a mãe não o
queria ver triste, de que a mãe apenas o queria feliz e que, onde ela
estivesse, iria para sempre gostar dele e guiá-lo no melhor caminho, e
abraçou-se a ela. A mãe dela tinha lágrimas nos olhos pois sabia que o ela sabia
o que Salvador estava sentir e que se revia naquele menino. Reviam-se na dor um
do outro e era isso que os unia.
- Tu não tens filhos pois
não?
- … tenho Salvador, mas já
não está cá.
- Também foi para o céu?
- Foi.
- Podes ser a minha nova
mãe?
Foi a partir desta
inocente pergunta, sem qualquer intenção que se sobrepusesse à intenção de
querer uma mãe, que tudo mudou. Ela nunca tinha pensado nessa possibilidade nem
em pensamentos remotos, nem com Salvador, ou qualquer outra criança. Para ela
não havia mais nenhuma razão para se levantar de manhã, além de ter um coração
ainda a bater no peito. Perante falta de qualquer resposta, Salvador, apenas a
abraçou revelando que naquele dia, deixara de ser uma criança que pensava com
cabeça de cinco anos.
- Não fiques triste! Eu
não fico triste se não quiseres ou se não puderes ser a minha nova mãe.
- Oh pequenino… eu gostava
muito de ser tua mãe.
- A sério? Achas que a
minha mãe fica zangada comigo?
- A única coisa que ela
iria querer era que tu estivesses feliz. Acima de qualquer coisa, ela vai ser
sempre a tua mãe. Nunca ninguém vai ocupar o lugar dela.
E a
partir daqui, ela e o pequeno reguila viveram lado a lado e redescobriram que a
vida nos leva por caminhos mal traçados e até mesmo tortos, com muito
sofrimento em todas as paragens, mas que na meta há sempre um letreiro a dizer:
bem-vindo à felicidade.
No dia da oficialização da
custódia do Salvador, atribuída a ela, foram correr para a praia, libertar toda
a alegria e deixá-la fluir pela natureza. O Salvador tinha dito que queria
gritar tanto para o som poder chegar à mãe, e ela ficar a saber “que tenho uma
nova mãe, mas que ela vai ser sempre a mais mãe”. Estafados deitaram-se numa
duna.
- Vou passar a chamar-te
Sal!
- Sal? Mas isso não é o
que pões no arroz e quando pões muito o arroz fica muito salgado e dá muita
sede?
- Sim… É como tu! Deste um novo gosto à minha
vida e dás – me muita sede de viver!