Nunca na história da humanidade existiu um momento em que o mundo inteiro falou de um só assunto - da Pandemia COVID-19. Os seres humanos uniram-se contra a falta de descriminação da doença. Ela mata ricos e pobres; brancos e pretos; velhos e novos. Não escolhe quem infecta. O medo falou alto e toda a gente se fechou em casa. As ruas ficaram desertas. As clínicas veterinárias encheram.
Durante estes últimos tempos mantive-me em silêncio, não porque não tivesse o que dizer (toda a gente adora opinar), mas porque o "efeito pandemia" assolou de forma drástica o meu dia-à-dia e o de muitos colegas veterinários e profissionais da área.
Os últimos quatro meses foram literalmente o sonho e o pesadelo de todos os veterinários - de repente os animais estavam todos a precisar de assistência médica. Alguns já estavam doentes há meses, em sofrimentos ignorado pelos seus "cuidadosos" donos; outros precisavam apenas de uma desculpa para sair de casa, como cortar unhas curtas, ou colocar a vacina da Raiva em dia, quando o prazo já tinha caducado há mais de 5 anos atrás. Tudo era urgente e nada podia esperar para depois da quarentena.
Foi preciso controlar as pessoas. A Ordem dos Médicos Veterinários de Portugal implementou algumas directrizes, começando, por exemplo, por desautorizar o atendimento de cuidados de saúde não urgentes. Todos passamos a trabalhar por marcação e os donos começaram a ficar à porta da clínica. A nossa indumentária mudou. Parecíamos uns astronautas e as nossas mãos secaram de tanto pó talco de luva e álcool. As equipas foram divididas e isoladas e as clínicas que não tinham pessoal suficiente tiveram de reduzir o seu horário, ou mesmo de fechar; os veterinários que trabalhavam em serviço domiciliário viram os seus serviços suspensos, ou criticados pelos colegas.
As dúvidas surgiram - o que era urgente e o que não era? Um corte de unhas podia ser considerado urgente, se na sua ausência as unhas revirassem e magoassem a pele do animal; uma vacina era essencial, se implicasse a protecção do animal e do seu dono, principalmente no caso das doenças transmissíveis aos humanos. O conceito de urgência era variável de clínica, para clínica. Surgiram acusações e guerras entre colegas veterinários. Nem dentro da nossa classe a solidariedade humana prevaleceu. Os tutores migraram para outras clínicas, mediante a disponibilidade das mesmas (ou não) para atenderem os seus caprichos. A Ordem remeteu para a direcção clínica de cada espaço a decisão de continuar a vacinar. Houve quem temesse a ocorrência de surtos de Parvovirose, Esgana, ou Leptospirose. Para muitos da nossa comunidade não fazia sentido suspender cuidados de profilaxia por tempo indeterminado.
Lentamente e com grande poder de adaptação, os veterinários por todo o mundo, foram-se moldando às novas regras. As consultas demoravam o dobro do tempo, porque não havia um tutor para ajudar a segurar do patudo em cima da mesa, ou para o acalmar. Os telefones não paravam de tocar, a uma velocidade que, com a diminuição das equipas, era impossível de dar resposta. Foram-se adaptando também ao grau de maluquice dos tutores, que dadas as circunstâncias sociais (penso eu), muitas vezes demonstravam falta de paciência, compreensão, bom senso, ou mesmo educação.
Era tão bom que a Pandemia realmente aproximasse os seres humanos e os tornasse solidários, mas cedo se percebeu que isso era uma ideia inocente e cor de rosa, que os media queriam que comêssemos. No geral, os seres humanos continuaram e pioraram os seus comportamentos habituais de egoísmo.
Quando a quarentena terminou e as restrições começaram a ser aliviadas, recebemos a segunda vaga de loucura - a taxa de adopções/compra de animais disparou durante o confinamento e todos os bebés apareceram para iniciar as vacinações. Quem não ama bebés? Também nesta fase, todos os cuidados de saúde pendentes, como castrações, vacinações não prioritárias, desparasitações, etc etc, começaram a ser colocadas em dia. A loucura de trabalho continuou.
Estamos em Portugal, em Agosto de 2020, e as coisas começaram a acalmar. Depois de semanas a sair 30 a 45 minutos depois da minha hora, estou finalmente a conseguir processar a loucura destes tempos. Admiro-me como nunca tive medo da doença e começo a achar que foi simplesmente porque não havia tempo para ter medo. Os meus colegas e os animais precisavam de mim.
Esta não é uma publicação de lamento; pelo contrário. É a prova concreta de que, apesar de muitos momentos de dúvida, que acredito que muitos colegas veterinários sintam ao longo da sua carreira, a nossa profissão é das mais maravilhosas e gratificantes do mundo. Em momentos atípicos da história da humanidade, em que muita coisa pára, as nossas ferramentas intelectuais e práticas, permitem-nos continuar a oferecer uma ajuda valiosa às pessoas e à sociedade. Mesmo que estas não reconheçam o nosso valor, no final do dia o nosso foco deverá ser sempre o bem estar dos animais que assistimos e a nossa consciência deverá sentir-se tranquila.