sexta-feira, 6 de abril de 2018

O controverso caso de Amelie

Amelie era a cadelinha de estimação da actriz portuguesa Maria João Bastos. Há coisa de dois anos, foi submetida a uma anestesia geral, para fazer uma limpeza dentária, tecnicamente chamada de destartarização, num hospital no sul do país. Após a alta, algo não correu bem e a cadelinha deu entrada de urgência, acabando por falecer. Esta é a versão resumida, sem especulação, sem detalhes e sem juízos de valor.

O que se seguiu poderia ter ajudado a trazer alguma conclusão acerca da causa de morte da cadelinha, mas tal não aconteceu, uma vez que a actriz, no meio da sua dor e perda, optou por vir para o Facebook "gritar" a sua revolta, para com o hospital e a médica veterinária que acompanhou a cadelinha.



Os comentários a esta publicação, foram vergonhosos, com insultos do pior à médica, ameaças de morte, críticas e mais insultos a toda a minha classe profissional. Isto resultou num processo de difamação contra a actriz, cujo veredicto foi publicado estes dias, sendo a actriz ilibada e optando, dois anos depois de iniciado o processo crime, por repetir as acusações. 

Se eu não fosse veterinária, se calhar até acharia aceitável a atitude da senhora e isto fez-me pensar que realmente não devemos levar uma rede social tão pouco a sério, em nenhuma área profissional. Devemos ter cuidado com o que optamos por publicar, e essa responsabilidade é ainda maior, quando somos uma "figura pública". 

Neste caso, ninguém, a não ser as pessoas envolvidas de forma directa, esteve lá para saber o que realmente se passou no pós-cirúrgico deste animal. Até pode ter sido erro da médica, ou se calhar até foi a dona que não vigiou o animal como devia, ou deu-lhe comida muito cedo. Não sabemos! No entanto, errar é humano, mas não é humano linxar em praça pública percursos profissionais que exigiram anos e anos de sacrifício. As responsabilidades devem ser sempre apuradas e procuradas, usando os meios adequados.

O que também me deixou desapontada foi a forma espantosa, como num momento somos os melhores profissionais do mundo e, ao mínimo deslize, como se erros de matemática a medicina veterinária se tratasse, passamos a ser os piores. Há bons e maus profissionais em todo o lado e eu não conheço o trabalho desta médica, mas sei que é humana e espero nunca ter de passar por semelhante situação. Ninguém erra porque sim. A perda de uma vida não é só traumática para os donos é, e ainda mais se acharmos que a culpa poderá ter sido nossa, para os profissionais que os tratam. 

Infelizmente a medicina veterinária não é matemática e os veterinários não são robots. É triste sentir que realmente os anos que passamos a estudar e o tempo que investimos nesta profissão, e as horas que passamos longe de quem gostamos, são cada vez menos valorizados pelos portugueses. Acredito que isto seja válido noutras profissões também. O atendimento e interacção com o público nem sempre é fácil, mas há limites. Dá mesmo vontade de pegar nas malas e ir para fora, para países onde somos tratados com respeito e carinho. 

Toda esta história se tornou num circo de acusações onde o importante ficou por esclarecer: afinal qual foi a causa de morte da Amelie? Tudo se perdeu; a cadelinha, a dignidade de todos os envolvidos e acima de tudo, a verdade.

3 comentários:

Ângela disse...

Tenho esse sentimento em relação à minha classe de professores... Mas acho que isso se passa em todo o lado com todas as profissões.

Alu disse...

Pois, talvez seja um problema da sociedade em geral. No entanto, com a crescente preocupação com o bem-estar animal e o aparecimento das redes sociais e moralistas de sofá, aumentou também a falta de respeito para com uma classe que eu acho que é vista com muitos maus olhos - os veterinários. E esta opinião negativa baseia-se num conjunto de maus colegas, de concorrência desleal entre os mesmos e desconhecimento genuíno acerca das condições de trabalho desta profissão.

Só para dar um exemplo: tenho colegas a trabalhar mais de 50 horas semanais, com noites e fins de semana que recebem 750 euros mensais...brutos. Tanto como uma empregada de balcão (sem desvalorizar essa profissão, mas tendo em conta que há muito menos investimento em formação). E é um problema geral! Nao sao casos pontuais.

Somos também dos profissionais que mais sofrem de depressão e tendencias suicidas e de burnout. Mas ninguém percebe o porquê, porque quase ninguém sabe as nossas condições de trabalho. Imaginam que sao as mesmas que há 20 anos atrás, quando só havia 1 ou 2 vets por concelho, era rico porque trabalhava muito, mas era reconhecido e valorizado. Hoje somos os maus da fita, so queremos dinheiro (quando nao é de todo verdade) e nao gostamos de animais, porque nao trabalhamos de borla ... isto dará para outro post XD ---ja estou a hiperventilar só de falar do tema!

Ângela disse...

Professores: igual. Somos imensos, e não uma minoria como há umas décadas, em que até havia falta de professores. Somos vistos como preguiçosos, como ricos, com horários privilegiados como se não levassemos imenso imenso trabalho para casa. Somos uma classe em que todos dizem mal dos outros dos outros níveis de ensino, já para não falar entre tipos de contrato (efetivos/contratados e os que, como eu, ainda nem chegámos ao patamar dos contratados). Estão sempre a falar mal dos profs de 1o ciclo, que não fazem nada, mas se algum é colocado em 1o ciclo, faz de tudo para sair deste nível de ensino porque é muito trabalhoso.