segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"Salvador"

por Andreia Silva,
24 anos


O dia estava a chegar ao fim. Estava naquela hora em que a noite ainda não chegou e o dia ainda não foi embora. Aquele Outono chegou com cara de inverno. Contrastando com os dias anteriores, a chuva nesse dia não fez questão de aparecer, dando lugar ao sol e consequentemente ao frio. Mas ela sempre preferira o frio de rachar, preferencialmente pintado de branco, à chuva, que era incomodativa. 

Tirou da bolsa as luvas guardadas desde que o sol lhe começara a aquecer as mãos, mas agora que esse tinha ido embora, não as podia dispensar. Em tempos, quando andava com o coração a ferver e em chamas, não se importava com as temperaturas negativas a tocar-lhe as mãos. Mas agora não, o calor, perdeu-o todo, naquela tarde fatídica de Junho quando uma onda, uma simples onda, levou uma parte integrante de si, um ramo do seu tronco, o calor inflamado que fazia arder o coração e as mãos. E agora tinha de usar luvas. E ela que nunca tinha gostado de luvas. 

Começou a sua caminhada habitual pelas ruas tão conhecidas, até casa. O percurso era tão rotineiro que nem precisava de pensar. Os pés quase que iam sozinhos. E ultimamente era assim. Ela limitava-se a ir para onde os pés a levavam. Se eles, num instante, não mexessem mais, ela fazia-lhes a vontade e parava onde quer que estivessem. O mundo já não fazia sentido. Mesmo com toda a gente sempre do lado dela, a mãe, os amigos, até os colegas de trabalho para quem nunca tinha falado, lhe vinham dizer que podia contar com eles. Mas ela já não se sentia parte deste mundo. Só queria viver o mais rápido possível para voltar a ter o calor de volta ao seu coração. 2
Entrou em casa e encontrou a mãe e o “sobrinho”, como apelidava o menino de quem a mãe tomava conta desde que era um bebe. E este encontro tinha-se tornado habitual nos últimos tempos. Por esse hábito já considerado rotineiro, não percebeu de imediato que algo se passava. O pequeno reguila não fez jus ao nome e, não veio a alta velocidade agarrar-se às suas pernas e averiguar se haveria algum presente para ele, escondido entre as coisas dela. Ao invés disso estava num estado completamente apático a olhar para a parede. Procurou a mãe pela casa toda, até que a foi achar na varanda agarrada ao telemóvel com uma cara capaz de assustar um morto.

- … mas olhe, assim que souber de mais alguma novidade, peço-lhe que me telefone. O Salvador está muito assustado. Obrigada. Com licença.

- Mãe, que é que se passa? E não tentes dizer que está tudo bem e que não é nada para me poupar, porque está visto que aguento com qualquer coisa.

- É que…a Vera vinha hoje mais cedo buscar o Salvador para irem passear e… nós estávamos na porta a vê-la chegar e… devias ver o sorriso dele, estava tão feliz, mas depois…

- Depois o quê? Mãe, diz-me por favor o que se está a passar!

- … depois veio um carro que não a viu ou viu mas não consegui travar, olha não sei… a Vera foi atropelada e o Salvador assistiu a tudo.

Ela queria dizer tudo, queria dizer alguma coisa que fosse, mas nada lhe saia. Só conseguia pensar no pequeno reguila e no que ia ser dele sem aquela mãe, já que pai nunca soube o que era. Tinha três mães, uma mais mãe, como ele dizia sempre. 3

- A Vera… morreu?

- Não, mas o estado é considerado muito grave. Não se sabe se irá sobreviver!

Ela correu para a sala e encontrou-o no mesmo estado. Estado que ela conhecia tão bem, infelizmente! Estado de quem não sabe como viver daqui para a frente, estado de quem reza para que tudo o que está a acontecer seja um pesadelo e que o despertador toque o mais rápido possível. Tinha medo de falar, não sabia se ele quereria estar sozinho, mas uma criança do alto dos seus cinco anos não deveria ter que conhecer a palavra solidão.

- Então pequenino?! A mãe vai ficar boa, pensa que sim e isso vai acontecer. Sabes que ela não gosta de te ver triste.

- A culpa foi minha! Eu pedi-lhe tanto para irmos passear. Ela vai embora… para o céu?

E nesse instante fez o que ainda não tinha conseguido: chorar. Chorar como choram as crianças de cinco anos quando percebem que perderam para sempre alguém que amavam, chorar como choram as crianças de cinco anos quando se sentem desprotegidos porque lhes roubaram a capa de protecção e mataram o seu super herói. Amarrou-se a ela e ela deixou-o ficar o tempo que ele quis. Nem tinha reparado na mãe, encostada à porta, à espera do momento certo para entrar, se é que naquela altura, havia um momento certo que fosse, para o que iria acontecer. 4

- Ah mãe, estás aí! Coitadinho, adormeceu de tanto cansaço. É bom que ele durma. Assim enquanto dorme tem sonhos bonitos. Já ligaram do hospital? Há novidades? Que cara é essa?

- A Vera não resistiu aos ferimentos…

E agora ela também chorava, não tanto pela Vera, com quem poucas vezes se tinha cruzado, mas por aquele menino que ia ter uma mudança tão grande na sua pequena vida. E ela sabia tão bem, demasiadamente bem o que era perder alguém assim, desta maneira, por nada e do nada. E ninguém merecia ter essa dor tão intensa escrita nas páginas da vida, muito menos num caderno que ainda mal tinha estreado.

Com a agitação que elas fizeram, Salvador despertou.

- Vocês também estão tristes?

- Salvador, olha para mim. Tenho que te dizer uma coisa, mas quero que saibas que nunca vais ficar sozinho, eu vou estar sempre aqui para ti e nunca te vou abandonar. A tua mãe vai gostar sempre de ti, sempre, e vai olhar sempre por ti e vai fazer com que tu sejas muito feliz. E tu podes continuar a gostar dela da mesma maneira. Porque ela lá de cima, do céu, vai sentir isso. Está bem pequenino?

Ele acenou com a cabeça, como se o sono o tivesse feito compreender essa parte, de que a mãe não o queria ver triste, de que a mãe apenas o queria feliz e que, onde ela estivesse, iria para sempre gostar dele e guiá-lo no melhor caminho, e abraçou-se a ela. A mãe dela tinha lágrimas nos olhos pois sabia que o ela sabia o que Salvador estava sentir e que se revia naquele menino. Reviam-se na dor um do outro e era isso que os unia.

- Tu não tens filhos pois não?

- … tenho Salvador, mas já não está cá.

- Também foi para o céu?

- Foi.

- Podes ser a minha nova mãe?

Foi a partir desta inocente pergunta, sem qualquer intenção que se sobrepusesse à intenção de querer uma mãe, que tudo mudou. Ela nunca tinha pensado nessa possibilidade nem em pensamentos remotos, nem com Salvador, ou qualquer outra criança. Para ela não havia mais nenhuma razão para se levantar de manhã, além de ter um coração ainda a bater no peito. Perante falta de qualquer resposta, Salvador, apenas a abraçou revelando que naquele dia, deixara de ser uma criança que pensava com cabeça de cinco anos.

- Não fiques triste! Eu não fico triste se não quiseres ou se não puderes ser a minha nova mãe.

- Oh pequenino… eu gostava muito de ser tua mãe.

- A sério? Achas que a minha mãe fica zangada comigo?

- A única coisa que ela iria querer era que tu estivesses feliz. Acima de qualquer coisa, ela vai ser sempre a tua mãe. Nunca ninguém vai ocupar o lugar dela.
 
E a partir daqui, ela e o pequeno reguila viveram lado a lado e redescobriram que a vida nos leva por caminhos mal traçados e até mesmo tortos, com muito sofrimento em todas as paragens, mas que na meta há sempre um letreiro a dizer: bem-vindo à felicidade. 

No dia da oficialização da custódia do Salvador, atribuída a ela, foram correr para a praia, libertar toda a alegria e deixá-la fluir pela natureza. O Salvador tinha dito que queria gritar tanto para o som poder chegar à mãe, e ela ficar a saber “que tenho uma nova mãe, mas que ela vai ser sempre a mais mãe”. Estafados deitaram-se numa duna. 

- Vou passar a chamar-te Sal!

- Sal? Mas isso não é o que pões no arroz e quando pões muito o arroz fica muito salgado e dá muita sede? 

- Sim… É como tu! Deste um novo gosto à minha vida e dás – me muita sede de viver!