Ainda sobre a praxe...há muita coisa que eu tenho a dizer, baseado na minha experiência. Pode não ser a mesma da maior parte das pessoas, mas aqui vai:
No primeiro ano em que entrei na universidade, mais especificamente, na Faculdade de Belas Artes do Porto, não fui praxada. Não era antipraxe, simplesmente não havia praxe. Não senti pena; usar o traje não era o meu objectivo e achava até um pouco ridiculo, aquele ar de superioridade que as pessoas trajadas tentam transparecer. A vida universitária era aquilo que deveria ser: acordar cedo, ir para as aulas, sair das aulas, trabalhar nos mil projectos que havia para fazer, relaxar e repetir o processo na manhã seguinte. Não foi complicado integrar-me, mas também não digo que tenha sido fácil; era a primeira vez que morava sozinha, estava num curso, que não tinha sido a primeira opção e estava a detestá-lo. Não conseguia ver um objectivo, que me fizesse sentir feliz, ou entusiasmada.
Mudei de vida. Voltei um ano ao secundário. Tive aulas de Biologia e Geologia e Física e Química. Trabalhava de tarde e tinha explicações, tudo com o objectivo de entrar em Medicina Veterinária. Fiz os exames e entrei, novamente, na segunda opção: Engenharia Zootécnica. Achando que se calhar não me tinha adaptado bem no Porto, por não haver praxe, escolhi experimentar. A minha rotina passou a ser: Acordar cedo e ir para a praxe; ir às aulas; no intervalo ir para a praxe; no fim das aulas praxe; ir para casa para trocar de roupa; jantar e praxe até à meia-noite. Isto durante os dois meses e meio iniciais do semestre. Era cansativo e era chato; muitas vezes ficávamos horas sem fazer nada em específico, e eu precisava de fazer mil coisas, como estudar, arranjar uma casa para morar, dormir, conseguir estar atenta nas aulas, namorar e ter vida própria.
Nunca me vou esquecer de determinados momentos marcantes:
Aquela vez em que me fizeram encher "à engenheiro" e eu me enganei a contar o número de Neper, porque não fazia a mínima ideia o que raio era o número de Neper, visto que tinha vindo de Artes. E uma "Excelência" gritou: " Não teve Matemática, caloira?! Nem sabe contar direito!" Nessa altura, depois de horas a ser praxada, sem ainda ter arranjado casa, senti-me integrada, tão integrada, que me levantei e fui a chorar de raiva pela antiga linha do comboio fora. Passado um minuto, vem uma das raparigas que me estava a praxar atrás de mim e diz:
"- Espera Luisa! Acalma-te! Não devias ter virado as costas às Excelências. Anda, vamos voltar e tu pedes-lhes desculpa." - disse ela.
Eu limpei as lágrimas de frustração e voltei, mas não pedi desculpa e até hoje não me arrependo. Arrependo-me de ter perdido o controle e arrependo-me de ter compactuado com aquele tipo de "brincadeira". Aquilo que aquelas pessoas estavam a fazer não era uma brincadeira de integração. Era humilhar, e com prazer.
Seguiram-se outra série de episódios. Incluindo uma tentativa de vingança, por parte dessas "Excelências", que saiu furtada, visto que eu simplesmente disse "não", ainda tendo de ouvir ameaças de exclusão e tudo o mais.
Porquê que eu não desisti? Porque num curso de 25 pessoas, quando uma escolhe não ser praxada, é colocada de parte. Muitas vezes nem é de propósito. Acontece, que andamos tão ocupados a ser praxados, que a outra pessoa que não está a ser praxada é automaticamente excluída e ignorada. Lá se vai a integração num grupo, que a praxe tanto defende.
Felizmente, quando arranjei onde morar, tive a oportunidade de realmente conhecer e dar-me a conhecer aquelas que são hoje as minha quatro melhores amigas. Não foi na praxe que nos tornamos próximas. Na verdade, elas nem gostavam particularmente de mim. Eu não via aquilo que elas achavam "uma brincadeira", como realmente uma simples brincadeira; estava sempre com ar de "chateada" e faltava muitas vezes às praxes, fazendo os meus colegas encherem. Foi só com a convivência e com a passagem por alguns momentos complicados e outro muitos felizes, que essas amizades cresceram. Sim,na praxe conheci muita gente e arranjei muitos conhecidos, mas as pessoas nunca vão ser todas amigas. No final podemos contar pelos dedos aqueles que realmente são os nossos amigos.
Apesar de tudo houve brincadeiras engraçadas na praxe: aquela vez em que tivemos de dar de comer uns ao outros; quando tivemos de partir um ovo enfiado nas calças, que teimava em não partir quando nos sentávamos; correr pela praça a gritar que estávamos a arder e outra pessoa atrás a dizer "anda cá que eu sou bombeiro"; esperar que todos estivessem sentados à mesa para se começar a comer e a respectiva oração; saltar à corda na lama; o fingir que nos rapam as sobrancelhas, etc etc.
Isso para mim foi a verdadeira praxe. Eram momentos que realmente aproximavam as pessoas e não criavam intrigas, nem raivas, ou sentimentos maus.
Acredito que um dia, a praxe foi algo bom, mas cada vez mais deixou de ser assim, e deixará. Cada vez é mais sobre ser subjugado, humilhado, intimidado, ou segregado.
Num país em que mais de metade da população fala mal do governo, mas apenas assiste, sem se revoltar, a praxe é apenas um reflexo dessa forma de pensar. É o aceitar, porque "tem de ser"; é o aceitar, com medo das consequências; é o estar de tal forma atordoado e sem olhar crítico, que nem a eminência do perigo do mar nos acorda.
Um ano depois da minha experiência com a praxe, quando voltei a ser caloira no curso que era o meu sonho, não quis ser praxada novamente. Ser praxada fez-me perceber que o que realmente importava não era usar um traje, ou fazer o que nos mandavam. Era precisamente não fazer o que nos mandam e aprender a tomar uma posição. Conclui que o meu medo de não integração não dependia da praxe, mas antes de mim mesma. Mantive-me finalmente fiel aquilo que sou, e hoje em dia tento seguir aquilo em que acredito. Não segrego quem praxa, e quem não praxa. Tenho amigos dos dois grupos. Recusei-me simplesmente a continuar uma "tradição", porque não me relaciono com os seus ideais e não me sinto na obrigação de os perpetuar.
É simplesmente triste, como é que alguém pode colocar algo como a praxe, antes do seu próprio bem-estar.