Faz em Dezembro deste ano 3 anos que exerço a profissão de médica veterinária, mais especificamente em clínica de pequenos animais (sobretudo cães e gatos). Neste últimos três anos aprendi imensas coisas técnicas, que infelizmente não nos ensinam na universidade, como, por exemplo, a fazer cirurgia.
No entanto, há coisas que não são assim tão técnicas, e que também não nos ensinam na universidade, que dizem respeito à comunicação com os donos/pessoas, que também vamos aprendendo.
Apesar de saber mais sobre como comunicar com pessoas, ainda tenho muito a aprender e sinto que a comunicação é uma enorme lacuna na nossa formação. O tema não é directamente abordado na universidade, não é abordado no secundário, e muito menos é abordado enquanto somos mais jovens. Mas devia.
Falando especificamente da área da veterinária, em que cada vez mais os animais são vistos como membros da família, torna-se ainda mais difícil dar as más noticias, convencer as pessoas de que tratamento xyz é necessário e porquê, dar orçamentos e misturar dinheiro com amor...ninguém nos prepara para isso, vamos aprendendo por tentativa e erro. É esse stress emocional que desgasta quem faz veterinária. Não são as horas que passamos de pé e muito menos os dias em que estamos em "prisão domiciliária", porque nos calhou ter o telefone de urgência nesse dia. O que desgasta são as emoções e as lacunas na nossa capacidade de comunicar bem.
Noutros países da Europa, como o Reino Unido, onde os veterinários recebem o triplo e são efectivamente vistos com melhores olhos (e não como aqueles gajos que trabalham exclusivamente por dinheiro...), já começam a existir organizações de apoio psicológico, que disponibilizam cursos de comunicação, de gestão de tempo e de valorização pessoal.
Nestas últimas semanas resolvi procurar algum tipo de formação que me pudesse ajudar nesse sentido. Não encontrei mais do que uma pequena palestra que aconteceu há uns meses atrás em Lisboa e soube de um grupo de colegas responsáveis por um hospital veterinário, que contrataram uma psicóloga para apoiar os médicos, enfermeiros e auxiliares veterinários a lidarem com os seus problemas de comunicação.
Este ultimo facto deixou-me esperançosa e as coisas talvez comecem a mudar aqui em Portugal, mas tudo acontece a um ritmo tão lento...entretanto vamos perdendo colegas para o flagelo do burnout, da depressão e em última instância, para o suicídio e nunca estes temas são mencionados nas nossas universidades...
A título de exemplo do que poderia ser alterado no ensino, conto o único episódio em que o tema da eutanásia poderia ter sido abordado na universidade de forma pratica e não foi: foi numa aula de medicina interna, em que podíamos acompanhar os médicos e assistir ás consultas do Hospital Veterinário da UTAD. Foi nos pedido que saíssemos do consultório, para a médica poder falar desse tema com a dona em privado. É perfeitamente compreensível, que fosse pedida privacidade, mas no final seguimos simplesmente para a consulta seguinte. O tema da eutanásia e da comunicação não foi minimamente explorado. Nunca tivemos simulações de conversas com proprietários, nunca nos ensinaram a dar as más notícias.
Como é que aprendi? Nos estágios extra curriculares, que eu própria procurei. Mais do que acompanhar casos complexos, procurei sempre acompanhar as consultas. Vi imensas. Do meu cantinho, fui aprendendo quais as dúvidas mais comuns dos donos, como lidar socialmente com eles e com os seus animais, percebi as subtis diferenças entre o dono de gato e o dono de cão e observei muito. Tive sorte em encontrar e observar diferentes estilos de médicos. Fui muito bem recebida no ICBAS, onde deixavam os estagiários fazer os exames físicos de todas as consultas, e na Escócia onde encontrei muitos animais idosos, numa realidade completamente à frente da nossa. Depois, quando comecei, foi mais fácil sentir-me confortável na sala de consulta. Mas nem todos os meus colegas tiveram essa sorte. Nem todos tiveram a disponibilidade de estar 12 meses e ver os outros trabalharem e nem todos foram bem recebidos nos locais onde estagiaram. A maior parte saiu da universidade depois de 3 meses de estágio e foram literalmente atirados aos lobos. Tiveram de saber tudo e logo. Muitos foram colocados a fazer noites sozinhos, a receber 5€/hora, em turnos de 18 horas, ou mais e muitos foram embora, ou desistiram de veterinária passado um ano.
E a Ordem dos Médicos Veterinários, composta por muitos destes patrões, preocupou-se com a criação de vinhetas com morada e contacto, com boletins sanitários rastreáveis para evitar a usurpação de funções, com a imagem dos veterinários na comunicação social, tudo coisas válidas, mas muito menos urgentes que a necessidade de olhar pelos interesses imediatos dos seus membros. Estamos num tempo de mudanças rápidas no mundo da veterinária, mas não estamos a conseguir acompanhar as mesmas. Tudo parece demorar uma eternidade a acontecer, neste nosso cantinho à beira mar plantado, onde o bem estar psicológico da nossa classe está seriamente em risco.